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Lovecraft Country: o saldo final da primeira temporada

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Depois de um final grandioso, intenso e frenético, “Lovecraft Country” concluiu sua primeira temporada de forma poderosa, mas sem muitas brechas para um futuro

Por Marcelo Silva

 O primeiro episódio de “Lovecraft Country” – que comentei aqui – parecia deixar bem claro sobre o que seria toda a temporada: a busca de Atticus (Jonathan Majors) pelo seu pai, desaparecido misteriosamente nos EUA segregacionista dos anos 50.

Flertando timidamente com a fantasia, com a aparição de criaturas sobrenaturais (os Shoggoth) e desafiando o espectador a reavaliar o verdadeiro horror do universo que estava sendo apresentado, esse início estabelecia perfeitamente uma temporada de estreia promissora para uma série instigante.

Mas uma semana depois, eles viraram tudo de ponta cabeça. E seguiram fazendo isso até o fim.

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No segundo episódio, o que parecia ser o enredo de uma temporada inteira já estava resolvido, após uma sequência de acontecimentos que jogou o flerte com o mundo fantástico para longe e abraçou completamente magias, bruxos e rituais. Depois dele, a criadora da série Misha Green tomou a decisão ousada de estruturar a série da mesma forma que o livro, em que cada capítulo parece um conto isolado, ao mesmo tempo em que serve a uma história maior. 

Isso transformou “Lovecraft Country” numa série única. Não é exatamente como “Doctor Who” ou séries médicas e policiais, com o “caso da semana” e histórias paralelas sobre os personagens na temporada, mas também não tem nada a ver com “Game of Thrones” ou “Breaking Bad”, com suas narrativas contínuas.

O que diferencia cada episódio da série não são as histórias em si, mas a forma que elas foram contadas. Em vez de adaptar os roteiros dentro de um storytelling preestabelecido (como acontece nas séries de “caso da semana”), o storytelling mudava conforme a necessidade da história.

Lovecraft Country
Foto: Arte de André Mello

Com isso, diferentes subgêneros do horror ganharam espaço. Depois da fantasia sombria do segundo episódio, tivemos o terror de fantasmas, uma aventura estilo Indiana Jones com toques sinistros, horror corporal, oriental e até sci-fi, com direito a portais interdimensionais e seres de outro planeta. 

O resultado dessa experiência rendeu bons e maus momentos: se por um lado deixou a série constantemente interessante, já que ficava a curiosidade de como ela iria se reinventar na semana seguinte, por outro ela arriscou de tal maneira em alguns momentos que quase saiu dos eixos.

O quarto episódio por exemplo, em que Tic, Letitia (Jurnee Smollett) e Montrose (Michael K. Williams) se aventuram por um templo, com cenas que ecoam Indiana Jones, foi algo tão forçado e sem substância dentro do que já havíamos visto até então que este que vos escreve quase perdeu todo o interesse pela série. Outra armadilha foi o episódio centrado em Ji-Ah (Jamie Chung), que funciona perfeitamente como uma história isolada (praticamente um filme), mas dentro de uma história de 10 horas, foi deslocado e monótono. 

A trilha sonora também foi uma pequena montanha-russa, porque se as músicas antigas na maioria das vezes complementavam brilhantemente as cenas, os ritmos mais modernos quase sempre entravam de um jeito que fazia parecer que alguém colocou Rihanna e Cardi B por acidente na edição final.

Felizmente esses problemas foram devidamente enterrados com a reta final da temporada, uma sequência impressionante de três episódios para deixar todo mundo na ponta do sofá, com aquele sentimento sempre satisfatório de ver uma história culminando num grande final.

O excelente oitavo episódio foi a porta de entrada para a obra-prima da temporada que veio na semana seguinte, com a HBO resgatando mais uma vez o terrível massacre de Tulsa de 1921. Após “Watchmen” expor esse evento para o mundo todo no ano passado, “Lovecraft Country” foi além e fez os personagens vivenciarem os acontecimentos, num episódio inteiro dedicado a isso. Poderoso, emocionante e revoltante na mesma medida, é desde já uma das melhores horas da televisão em 2020. 

É importante dizer que esse episódio, assim como os vários ótimos momentos que a temporada teve, não são mérito somente de roteiro e direção. O elenco da série fez um trabalho impressionante, crescendo a cada episódio de tal forma que alguns personagens se tornaram muito maiores e mais potentes do que pareciam ser no começo.

Prova disso é Jurnee Smollett, gigante como Leti e dona de algumas das cenas mais espetaculares da temporada (o exorcismo no terceiro episódio é pra ficar gravado na memória de quem vota no Emmy). Além dela, Michael K. Williams acaba sendo o principal responsável em tornar Montrose um bom personagem, adicionando camadas e uma dramaticidade que permite o espectador ter uma empatia por ele que demora mais do que deveria para chegar.

Na verdade, dava para falar de cada membro do elenco principal aqui, já que apesar de Jonathan Majors ser um protagonista excelente, um dos grandes acertos de “Lovecraft Country” foi o espaço dado para os atores e atrizes brilharem. Todo mundo ganhou sua própria trama e as vezes até seu próprio episódio, e nunca entregaram menos que excelência. 

Tecnicamente a série também foi incrível. Sem recuar diante do que a criadora tinha em mente, os efeitos visuais e maquiagem foram ao limite.

Os shoggoth, apesar de terem começado um pouco estranhos, foram levados à perfeição no season finale, os fantasmas e a Kumiho também foram eficientes mas, sem dúvida, nada supera o efeito da metamorfose, uma das coisas mais absurdas e impactantes da TV mainstream que se tem lembrança nos últimos tempos e um efeito que nunca deixa de ser impressionante não importa quantas vezes vejamos. 

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E apesar do final agridoce – que de certa forma foi um bom resumo da temporada, bom e eficiente, mas irregular – que se rendeu inesperadamente ao storytelling mais tradicional, caindo em alguns clichês mas sem deixar de entregar grandes momentos, “Lovecraft Country” encerrou sua temporada inicial com um plot twist que foi a culminação perfeita de tudo que vimos nas últimas dez semanas.

Após ressignificar a mitologia de Lovecraft, o gênero de horror e alguns importantes momentos da história negra americana, a série aproveitou seus últimos minutos para dar um novo e poderoso significado para “magia negra”.

O grande mistério agora é o que o futuro reserva para esse universo. Apesar dos bons números de audiência e da recepção da crítica, a HBO ainda não confirmou uma 2ª temporada (algo incomum para a emissora, que as vezes faz isso antes mesmo de suas séries estrearem) e sinceramente, apesar de o final deixar algumas pequenas brechas, não vejo muito espaço para uma continuação mesmo. 

Dar sequência ao que vimos aqui será um desafio, uma nova história precisaria ser criada praticamente do zero e é difícil antecipar o que e quem vai centralizar toda a ação.

Por outro lado, levando em conta que a história terminou no equinócio de outono, alguns meses antes de Rosa Parks fazer história e se tornar a “primeira-dama dos direitos civis” nos EUA, existe toda uma série de eventos do mundo real que Misha Green deve estar ansiosa para explorar dentro de seu universo. 

Além de tudo isso, a verdade é que “Lovecraft Country” é uma série essencial para os nossos dias e independente de como o futuro dos EUA seja decidido nas próximas semanas, a série continuará sendo extremamente relevante.

Bom… fica a torcida para que hajam muitas novas histórias para contar. 

Marcelo Silva, colunista de Cultura

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