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Utopia e a ascensão dos teóricos da conspiração

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Utopia, nova série da Amazon brinca com teorias da conspiração e pandemias no pior momento possível 

Por Marcelo Silva

Em 2001, após os ataques terroristas aos EUA em 11 de setembro, diversos filmes e séries correram contra o tempo para se adequarem à nova realidade que havia surgido inesperadamente. Filmes passados em Nova York removeram as torres digitalmente, projetos envolvendo explosões ou ataques de qualquer espécie foram adiados e outros que envolviam terroristas e ataques a cidades americanas chegaram a ser cancelados – como uma sequência para “True Lies”, de James Cameron.

Não era censura (o governo americano não obrigou ninguém a nada), mas um consenso de que ninguém estava no clima de ver nada com esses elementos naquele momento.

Pulamos para 2020: o mundo está enfrentando uma das pandemias mais devastadoras do mundo moderno ao mesmo tempo em que luta também contra a desinformação sobre ela que é espalhada por todo canto da internet.

Teorias da conspiração sobre o COVID-19 ser uma doença fabricada, diversas pessoas fazendo campanhas contra as vacinas (incluindo governantes) e um sentimento generalizado de que não dá para confiar em nada nem ninguém.

É de se imaginar que o mundo do entretenimento ia dar uma pausa em quaisquer tramas envolvendo cenários apocalípticos com vírus letais e grandes conspirações, certo? 

Bem, aparentemente passamos a nos importar menos com a forma que o entretenimento deve abordar situações que ecoam o mundo real, já que “Utopia”, a nova série da Amazon, é um prato cheio para os desmiolados que espalham histórias infundadas e teorias malucas por aí.

Escrita por Gillian Flynn (“Garota Exemplar”, “Sharp Objects”), “Utopia” é a versão americana de uma série britânica de 2013 com o mesmo nome e tem uma premissa inicial interessante, em que um grupo de jovens que se conheceram online graças a uma HQ cult e cheia de mensagens subliminares se encontram pessoalmente para pegar a continuação da história (que leva o nome da série), só para descobrir que os quadrinhos que eles discutiram por anos são mais reais do que imaginam.

Os problemas da série começam quando vemos que vários fãs da HQ teorizam que ela antecipou o surgimento de diversos vírus pelo mundo nos últimos tempos. Não vou entrar em detalhes para evitar spoilers, mas é só fazer a soma: uma história mais real do que os personagens imaginam e uma HQ antecipando epidemias pelo mundo. Dá para apostar onde isso acaba dando, certo? 

Utopia e a ascensão dos teóricos da conspiração
imagem divulgação

A versão original foi encarada como uma simples ficção científica escapista e subversiva quando estreou e a criadora desse remake americano o defendeu com esse argumento também. E talvez se a série fosse lançada daqui uns cinco anos, com a pandemia no passado (espero), seria mais fácil enxergá-la dessa maneira. Agora, ter assistido aos oito episódios enquanto as redes sociais fervilham com histórias sobre o coronavírus ter sido criado na China e a vacina ser um coquetel pra dizimar a humanidade foi uma experiência… desagradável. 

Isso porque em “Utopia”, os teóricos da conspiração são os grandes heróis da história. Sabe aquele seu amigo que você parou de falar há meses porque compartilha histórias malucas sobre o COVID-19 e apoia a forma que líderes como Bolsonaro e o recentemente derrotado Trump lidam com a doença? Na série, esse tipo de pessoa é a única que realmente sabe o que está rolando na história. Lançar algo assim num mundo “normal” é só provocador (como foi a série original), fazer isso agora é não ter bom senso.

E mesmo se você não se importar com nada disso, os problemas de “Utopia” não terminam na falta de noção.

Apesar de começar bem, com os dois primeiros episódios estabelecendo a dinâmica do grupo principal e desenvolvendo bem os personagens e suas relações, o ritmo acelerado e a quantidade de coisas enfiadas na história ao longo dos episódios fazem o roteiro jogar tudo que deu certo no começo para o alto e vai ficando cada vez mais difícil nos importarmos com aquelas pessoas, já que elas nunca vão muito além do que foi apresentado no início.

 Além disso, a série cai em uma triste armadilha de storytelling que é transformar o recurso do plot twist numa muleta para manter o interesse do público no que acontece a seguir.

Como ela falha em nos conectar com os personagens, resta virar tudo de ponta cabeça duas vezes a cada episódio para que sejamos vencidos pela nossa curiosidade – algo que ironicamente a série critica no comportamento do ser humano, como se estivesse rindo da nossa cara. Pra se ter uma ideia, quando um personagem revela suas verdadeiras intenções já na reta final, a história já passou por tantas reviravoltas (algumas realmente impressionantes e bem-feitas, a maioria forçada) que a cena só me fez revirar os olhos.

Outra armadilha é a violência explícita, uma ferramenta que sempre caminha numa linha tênue, já que pode ser impactante e divertida quando bem utilizada, mas é muito fácil de cair no excesso. Com closes de unhas sendo arrancadas e luvas de cacos de vidro, percebemos rápido que “Utopia” cai no segundo caso, provando mais uma vez que só Quentin Tarantino tem passe livre para abusar de violência no audiovisual (e olhe lá hein).

Para não dizer que a série é uma perda total, o elenco realmente entrega o melhor que pode com o que tem em mãos. A dinâmica do grupo principal e a química entre eles é ótima, Christopher Denham transita de uma forma tão bizarra entre o sinistro e o adorável que faz de Arby um dos melhores personagens da série e Rainn Wilson e John Cusack parecem estar se divertindo muito interpretando lados opostos da conspiração (Cusack é especialmente maravilhoso no episódio final, com seu perigoso monólogo). Além disso, o final de temporada deixa vários ganchos e alguns deles apontam para tramas realmente interessantes numa possível segunda temporada. Mas é questionável se a curiosidade vai vencer dessa vez também. 

“Utopia” não seria uma série fácil de assistir em nenhum momento que estreasse. É violenta, os personagens não são fáceis de gostar – a protagonista é particularmente insuportável na maior parte do tempo – e os temas são delicados já que citam várias doenças reais do passado (como o Zika, a SARS e a gripe suína), mas com um roteiro mais refinado e uma direção cuidadosa, existia potencial para algo excelente, e quase tivemos isso, já que o projeto da versão americana de “Utopia” começou na HBO com direção de David Fincher (que trabalhou com Gillian Flynn em “Garota Exemplar”). 

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O que ganhamos porém, foi uma série que mira no cinismo e subversão característicos da filmografia de Fincher, mas acaba ficando só no exagero, mau gosto e num timing para a estreia que a fará cair na irrelevância muito mais rápido do que poderia. Quem sabe a próxima temporada no ano que vem, num mundo com a pandemia mais controlada e com as críticas recebidas, não caia um pouco melhor…

Marcelo Silva, colunista de Cultura

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