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A espiral de tragédias de “O Diabo de Cada Dia”

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A espiral de tragédias de O Diabo de Cada Dia , novo filme da Netflix. Com elenco estrelado, “O Diabo de Cada Dia” anda na corda bamba entre reflexão profunda e mensagem vaga

Por Marcelo Silva

O Diabo de Cada Dia”, adaptação do livro homônimo de Donald Ray Pollock, chegou na Netflix cercado de expectativa. O elenco cheio de nomes conhecidos dos blockbusters dos últimos anos e um trailer instigante fizeram o filme parecer uma das apostas do serviço de streaming para o Oscar do ano que vem. E talvez realmente fosse a intenção deles. Porém depois de assistir é difícil não pensar que a corrida por premiações dele deve morrer antes de mesmo de começar.

O filme, dirigido por Antonio Campos (filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes), é centrado em diferentes histórias de pessoas problemáticas do sul de Ohio e West Virginia nos EUA. Temos um veterano de guerra (Bill Skarsgard) e seu filho (Tom Holland/Michael Banks Repeta), um casal de serial killers (Jason Clarke e Riley Keough), um policial corrupto (Sebastian Stan), falsos profetas (Harry Melling e Robert Pattinson) e mulheres que se deixam levar por eles (Mia Wasikowska e Eliza Scanlen). O roteiro alterna entre três épocas diferentes para explorar os dramas dos diferentes personagens, com tudo convergindo para o personagem de Holland, Arvin Russell.

Não há nenhum lado positivo ou luz no fim do túnel nas mais de duas horas que Campos dedica a esse universo e cena após cena, vemos situações revoltantes, deprimentes e difíceis de digerir. Instituições imaculadas no sul dos EUA como a polícia e a igreja são postas à prova – é interessante como a frase “ele não é quem eu pensava que fosse” se repete exatamente com o policial e o novo pastor – e o tema do fanatismo religioso, incentivado por supostos homens de fé mal intencionados, é central em quase todas as histórias.

O Diabo de Cada Dia
Tom Holland – O Diabo de Cada Dia

Tom Holland, que aqui certamente viu uma das grandes chances de sua carreira para começar a embarcar em papéis mais sérios e desafiadores (e que rendem Oscar), parecia uma escolha arriscada para um filme assim, pela sua cara de bom moço e papel consolidado nos filmes da Marvel (e nos corações de milhares de adolescentes), mas é uma grata surpresa. Holland engole cada revés da vida de Russell com o olhar, de tal forma que no clímax, já sabemos exatamente o que o personagem está pensando quando é colocado numa situação particularmente complicada.

Além dele, Robert Pattinson segue com sua carreira impecável e cheia de personagens cada vez mais repulsivos, agora encarnando um falso e odioso pastor. Não há muito mais o que dizer sobre o ator, que há anos entrega trabalhos transformadores e despidos de qualquer vaidade. Os dois dominam o filme, mas o restante do elenco também faz o melhor que pode com o que lhes é dado, com destaque para Sebastian Stan – ótimo como o patético Xerife Lee Bodecker – e Bill Skarsgard – incrível como Willard Russell, o trágico pai do personagem de Holland.

É impossível não lembrar da filmografia dos Irmãos Coen enquanto se assiste ao filme, especialmente “Onde os Fracos Não Tem Vez”, que também contava com diversos personagens aparentemente aleatórios em um mundo depressivo e violento, cujas histórias convergiam em determinado momento. Porém, apesar de “O Diabo a Cada Dia” não ficar devendo muito para a fotografia e edição sempre impecáveis dos Coen, a comparação fica pelo caminho quando se pensa no filme um pouco além desses elementos.

Como citado anteriormente, há temas interessantes a serem explorados e personagens que parecem cheios de complexidades. Mas não foi a toa que eu disse que os atores e atrizes fazem o melhor com o que é dado, porque não é lá muita coisa. Todas as camadas que poderiam existir em falsos pastores, serial killers, fanáticos religiosos e num garoto tendo que lidar com tudo isso voam pela janela, dando lugar a personagens unidimensionais, que parecem peões a serviço dos horrores que a história quer que eles cometam ou sofram.

Por isso, toda a experiência que o filme poderia proporcionar se perde. Se nos filmes dos Coen o ciclo de violência costuma ser motivado por algo e há uma mensagem que engloba toda a narrativa, aqui as atitudes das pessoas quase sempre são motivadas apenas por instinto e não se chega a nenhuma conclusão quando os créditos começam. Não que seja obrigatório que todo filme tenha alguma mensagem, mas Antonio Campos parece realmente querer provar um ponto aqui. Mas o que seria? Todas as pessoas são ruins? A religião é tóxica? Não se pode confiar em ninguém? Há esperança mesmo quando tudo parece perdido? Será que é tudo isso? Ou nenhuma dessas coisas?

No fim das contas, “O Diabo de Cada Dia” é uma colcha de retalhos de situações e pessoas horríveis que se acotovelam de tal maneira para ganhar nossa atenção que antes de acabar já estamos anestesiados e quando tudo finalmente chega ao fim, nos sentimos vazios. Não com raiva, indignados ou tristes, apenas vazios.

Basicamente, a mesma experiência emocional que 2020 nos tem proporcionado. Fica a seu critério embarcar nisso voluntariamente.

Marcelo Silva, Colunista de Cultura

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