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Mulher maravilha 1984 e a essência do super-herói

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Mulher maravilha 1984, sequência do filme de 2017 é uma divertida e inspiradora carta de amor aos filmes de super-heróis clássicos.

Por Marcelo Silva

Assistir o Superman de 1978 nos dias de hoje, com universos cinematográficos e diferentes versões de super-heróis bem estabelecidos, é uma experiência interessante. O filme de Richard Donner é simples, inocente e muitos podem achá-lo até um pouco bobo. O Superman de Christopher Reeve vê o papel de super-herói como seu dever, o faz sem questionar se realmente deve e principalmente, acredita nas pessoas até as últimas consequências. Não é exatamente um reflexo da humanidade, mas é o símbolo de tudo de melhor que ela pode ter. Basicamente, um personagem da DC na sua forma mais clássica. 

É engraçado e triste ao mesmo tempo que pouco mais de 30 anos depois, o mesmo estúdio que entregou esse filme transformaria os super-heróis em figuras cínicas, melancólicas e cheias de crises, em histórias complexas e pesadas com uma atmosfera cinzenta. A concorrência também não está isenta, com seus filmes intrincados, cheios de easter eggs e mil referências constantemente questionadas pelos fãs de quadrinhos. 

Claro que é divertido ver personagens que jamais esperávamos e crossovers gigantescos nos cinemas, mas a simplicidade do Superman clássico, que se preocupava mais em mostrar o conceito de um herói e menos no universo em volta dele, as vezes faz falta. E é aí que entra Patty Jenkins, Gal Gadot e a Mulher maravilha. Apesar de ter surgido em “Batman v Superman” de 2016, como uma heroína experiente que perdeu a fé na humanidade (porque Zack Snyder é incapaz de fazer um personagem otimista), foi só no ano seguinte que realmente a conhecemos, no seu primeiro filme solo. 

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Se ali já sentimos o contraste dela em relação a outros heróis do cinema nos últimos anos, com sua bondade e pureza inabaláveis e seus discursos sobre amor e compaixão, agora é difícil não abrir um largo sorriso vendo Diana Prince em ação. Em seu novo filme, ela é exatamente o que o Superman de Reeve era lá no final dos anos 70: a mais pura personagem da DC nos cinemas. 

Mulher maravilha 1984
imagem divulgação – mulher maravilha 1984

Na verdade, a conexão entre “Mulher maravilha 1984” ao clássico de Richard Donner não é pura coincidência nem se dá pelo fato de que ambos são filmes da Warner/DC. A inspiração de Jenkins é evidente e a tentativa de trazer os sentimentos de fascínio que Donner criou são claras. Porém, se o desafio do diretor em 78 era fazer Christopher Reeve voar, o desafio de Jenkins é lembrar o espectador, especialmente o fã de HQ, que filmes como aquele ainda podem ser feitos e mais do que isso, aproveitados. 

Agendado inicialmente para estrear em novembro do ano passado, o filme foi adiado para o verão americano de 2020 e alguém na Warner deve ter se odiado muito por isso. Depois de mais dois adiamentos, chegou aos cinemas agora no Natal (simultaneamente com o lançamento em streaming) e o timing para a estreia foi o melhor e o pior possível ao mesmo tempo. Isso porque “Mulher maravilha 1984” é, na sua essência, cafona para a indústria cinematográfica (e aparentemente para o público) de hoje e se isso é ótimo pela positividade que traz, pode ser péssimo porque em dezembro de 2020, tentar ser positivo é um ato audacioso. 

O roteiro é digno de uma HQ… bem, de 1984: aqui, Diana Prince precisa enfrentar Max Lord (Pedro Pascal) e a Mulher-Leopardo (Kristen Wiig), depois que estes se aproveitam de uma pedra capaz de realizar desejos. Isso pouco depois de seu grande amor Steve Trevor (Chris Pine) ressurgir dos mortos misteriosamente (na verdade é algo explicado rapidamente no filme, mas aí já seria um spoiler).

Jenkins não escondeu de ninguém suas intenções com essa sequência. Totalmente livre do estilo deprimente com cores frias e cinismo de Zack Snyder, que no primeiro filme criava um contraste entre a história que ela queria contar e o estilo do universo DC que a Warner tentou fazer acontecer, a diretora abraçou todo o estilo divertido e mágico da Era de Ouro das HQs e o deslumbramento que os filmes de herói de antes dos anos 2000 traziam. Há uma valorização de virtudes, as resoluções dos conflitos são sempre pautadas em sentimento e as sequências de ação não estabelecem muitos limites para o que é possível acontecer (também há um momento engraçado sobre um objeto famoso do cânone da personagem cujo surgimento é uma maluquice típica dos quadrinhos).

É claro que existem problemas. O filme é muito mais longo do que precisa e se ele ganha pontos pela simplicidade de sua trama, perde por estendê-la demais. As coisas escalam de uma maneira inacreditável e talvez se tivessem baixado só um pouco o nível da ameaça no clímax, daria para ter resolvido o conflito de uma forma mais rápida. E apesar de se sustentar por um excelente trabalho de Kristen Wiig (que trabalha a mudança de personalidade da sua personagem com perfeição), a Mulher-Leopardo ganha esse nome por motivos que são forçados até mesmo para a lógica interna desse filme. E seu destino, assim como o do outro vilão são inexplicáveis, parece até que Jenkins esqueceu de escrever essa parte da história. 

Mas essas questões são compensadas pelo excelente trabalho do elenco, com destaque para Pedro Pascal, que consegue equilibrar perfeitamente a caricatura e a humanidade de seu personagem e Gal Gadot, que segue melhorando sempre o bom trabalho que faz no papel principal desde 2016, pronta para entrar no panteão ocupado por nomes como Hugh Jackman, Christopher Reeve e Robert Downey Jr entre os grandes intérpretes de super-heróis do cinema. 

Além disso, é bonito ver como Jenkins valoriza momentos mais intimistas tanto quanto as grandiosas cenas de ação. A perseguição nas ruas do Egito é ótima, mas o momento em que Diana e Steve viajam entre os fogos de artifício do 4 de julho é uma das cenas mais bonitas do cinema em 2020. O filme também dá o tempo necessário para a protagonista (e consequentemente o público) sentir e entender a importância do momento em que ela descobre um novo e importante poder.

E mesmo depois de “Shazam”, ainda é uma novidade reconfortante ver um filme da Warner/DC com atos genuínos e simples de heroísmo. A cena inicial do shopping é divertidíssima e voltando ao ponto inicial, impossível não lembrar de Superman (e mais ainda, lamentar que a versão de Henry Cavill nunca teve algo parecido com isso). Ainda nesse paralelo, é legal ver as soluções que Jenkins encontra para que Mulher maravilha possa resolver os conflitos evitando sempre recorrer a violência, tal qual a versão clássica do principal herói da DC.

O embate final entre a heroína e Max Lord é quase uma resposta ao contraditório e caótico clímax do primeiro filme, em que ela discursava sobre o poder do amor em meio ao fogo enquanto soltava um raio destruidor em Ares: aqui a mensagem também é embasada no sentimentalismo, mas  é um momento que faz sentido dentro do que havia sido apresentado até então. 

A solução para o problema apresentado é sim, completamente absurda, mas por isso mesmo me trouxe um sorriso no rosto. Diana, como uma boa super-heroína, acredita na humanidade até as últimas consequências e sua fé é recompensada da melhor maneira possível. Num ano que mostrou até onde pode ir a arrogância e egoísmo do ser humano, é fácil repudiar o filme por essa solução, mas essa é a beleza de histórias de ficção e fantasia, não? Ecoar a realidade num mundo de diferentes possibilidades. Grandes cidades podem ser protegidas por um homem capaz de voar, uma guerra pode ser vencida com a ajuda de uma guerreira com os poderes de uma deusa e a humanidade, com todas as suas falhas e limitações, pode se unir para mostrar seus melhores valores, pelo bem comum. 

Mulher maravilha 1984 e a essência do super-herói
imagem divulgação – mulher maravilha 1984

Nesse momento e por um bom tempo ainda, vamos precisar de filmes como “Mulher maravilha 1984”. Ter fé na humanidade atualmente tem sido um desafio diário, do qual muitos já desistiram. Por isso mesmo, se deixar levar brevemente por universos fantásticos onde isso ainda é possível já deixou de ser apenas uma fuga… se tornou uma inspiração. 

Marcelo Silva, colunista de Cultura

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