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“Lovecraft Country” e os monstros do racismo, nova série HBO

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Lovecraft Country é a nova série da HBO que mistura os contos de H.P. Lovecraft com a realidade cruel dos EUA segregacionista dos anos 50

POR MARCELO SILVA

“Histórias são como pessoas. Não têm que ser perfeitas para amá-las, basta tentar apreciá-las e ignorar seus defeitos”

No último mês de junho, os protestos contra violência policial e racismo iniciados pelo assassinato de George Floyd nos EUA impactaram o mundo inteiro em todas as áreas possíveis.

No entretenimento, o caso mais notório e controverso foi a retirada temporária do clássico “E o Vento Levou” da plataforma de streaming HBO Max, após um artigo escrito pelo cineasta John Ridley que acusava o filme de ignorar os horrores da escravidão (o filme se passa no período da Guerra Civil Americana, em que se lutou pela abolição da escravatura) e perpetuar estereótipos dolorosos para pessoas negras.

Nesse caso a solução foi a reinclusão do filme com dois vídeos introdutórios contextualizando o filme e apontando onde ele envelheceu mal. Mas nos últimos meses, muito se debateu sobre como lidar com obras clássicas manchadas por visões antiquadas e ideologias racistas, misóginas ou homofóbicas (ou os três).

No último domingo, foi a vez de H.P. Lovecraft, um dos mais celebrados autores de horror da história da literatura, ganhar os holofotes e começou a ter seu legado confrontado, na nova série da HBO “Lovecraft Country”.

lovecraft country monstros racismo HBO
imagem reprodução HBO

Ambientada nos EUA segregacionista dos anos 50, ela traz um elenco principal quase que inteiramente negro, encabeçado por Jonathan Majors, que interpreta Atticus Freeman, um veterano de guerra em busca de seu pai, que desapareceu misteriosamente.

A frase que abriu esse texto é dita por ele no início do episódio, para justificar o fato do protagonista do livro que ele estava lendo ser um soldado confederado (exército que lutou a favor da escravidão nos EUA).

Algumas cenas depois, ele relembra que o pai o fez decorar um poema de Lovecraft intitulado “Sobre a Criação dos Negros”, em que o autor imagina pessoas negras como bestas trazidas pelos deuses em formas meio-humanas.

Antes de mais nada, ainda que esse poema seja só um dentre vários exemplos ultrajantes do racismo nas histórias do autor, é importante esclarecer que não acho que ele deva ser “cancelado”, até porque a inspiração para “Lovecraft Country” veio exatamente desse questionamento – e porque convenhamos, se isso não funciona com autores vivos, que dirá com quem morreu há mais de 80 anos.

O autor do livro no qual a série foi inspirada, Matt Ruff, disse que o escreveu porque o leitor que quer gostar das obras de Lovecraft, mas não consegue ignorar esses fatos já que ele sequer o considerava humano, era uma história realmente boa para se contar.

E o livro, agora uma superprodução da HBO, é brilhante ao ressignificar o horror das obras do clássico autor dentro de um universo totalmente novo. Os elementos fantásticos estão ali e há diversas referências e easter eggs a histórias pulp, super-heróis e monstros na primeira parte do episódio.

Mas tudo isso é enterrado assim que o verdadeiro terror começa a ser exposto, num discurso de James Baldwin sobre a exploração dos negros nos EUA, na história sobre os tijolos da Casa Branca e na forma com que as pessoas encaram os protagonistas por onde eles passam, os monstros do racismo vão se mostrando aos poucos, com a tensão sendo minuciosamente construída até explodir no clímax do episódio, onde sobrenatural e realidade se misturam, mas a noção de quem são os verdadeiros monstros já não é tão óbvia quanto parece.

Se nas obras de H.P. Lovecraft o Cthulhu (que faz uma rápida aparição no começo do episódio quase como uma indireta de como a série tratará o lado mais problemático do legado de seu criador) é a mais emblemática criatura criada pelo autor por ser a representação máxima do medo e ansiedade, levando à loucura as pessoas que o encaram, sendo adorada por cultos misteriosos e com o poder de se regenerar mesmo quando parece ter sido destruída, em “Lovecraft Country” o maior monstro que existe e que tem todas essas características, é muito mais assustador e cruel, pois o racismo extrapola a ficção, não faz parte de um universo fantástico e o pior: segue vivo até hoje, entre nós.

Agora resta saber se estamos dispostos a seguir fazendo com ele o mesmo que é feito com Cthulhu no começo do episódio e seguir destruindo esse monstro, não importa quantas vezes ele tente se regenerar.

Marcelo Silva, Colunista de Cultura

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