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“Borat: Fita de Cinema Seguinte” escancara falência moral dos EUA de Trump

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Falência moral dos EUA fica ainda mais evidente em sequência de Borat, famoso filme de 2006

Por Marcelo Silva

Em uma das sequências mais absurdas de “Borat: Fita de Cinema Seguinte”, o personagem interpretado por Sacha Baron Cohen sobe no palco de uma marcha anti-isolamento em Washington e começa a cantar uma música improvisada sobre infectar Obama com o “vírus de Wuhan”, decapitar jornalistas e a OMS, enquanto a plateia vai a loucura, aplaudindo e cantando junto.

É uma cena que resume bem o abismo que separa esse filme do original de 2006. Se lá, Borat precisava ir a extremos para expor os preconceitos e limitações do povo americano, aqui só o contexto (uma marcha anti-isolamento com pessoas empunhando bandeiras da Confederação) já é tão absurdo que ofende antes mesmo do personagem falar qualquer coisa. E mais assusta do que leva às risadas. 

Quando estreou em 2006, “Borat – O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América” (será a única vez que uso o nome completo) pegou o mundo de surpresa. Vulgar, caótico e sem qualquer limite, ele mostrou um lado podre dos EUA que na época, eles não gostavam de admitir que existia (ainda não gostam, mas também não conseguem mais esconder). Sacha Baron Cohen foi processado por diversas das pessoas que participaram da produção e quase foi linchado num rodeio no Texas ao debochar do hino nacional americano – a cena é uma das melhores do filme. 

Porém, no meio das piadas ofensivas e perigosas, “Borat” já avisava algo: entre o cowboy que aprova quando Borat diz que homossexuais são enforcados em seu país e os universitários que reclamam que as minorias estão roubando direitos das maiorias, estava um presságio do que aconteceria ali dez anos depois. E é nos Estados Unidos governado por Donald Trump que Borat retorna, agora com sua filha Tutar (Maria Bakalova, absolutamente fantástica), que ele pretende dar de presente para o vice-presidente Mike Pence (sim, essa é a trama do filme).

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Imagem reprodução – Borat: Fita de cinema seguinte

Não é exagero dizer que o personagem de Cohen se tornou um ícone da cultura pop após 2006 e por isso, o ator se uniu a outros sete roteiristas para conseguir solucionar o impasse de trazer o jornalista do Cazaquistão de volta, com a mesma premissa, num mundo em que ele é largamente conhecido. 

O resultado é um belo exercício de criatividade: para conseguir manter o elemento surpresa em locais mais públicos, Borat usa uma série de disfarces bizarros – e ver Cohen interpretando o personagem disfarçado de uma terceira figura é só mais um atestado do enorme talento do ator – e dessa vez, apesar de repetir a estrutura do anterior (apenas substituindo Azamat por Tutar), há um foco maior numa história roteirizada e na construção de um arco para os personagens, com espaço até para uma inesperada – mas bem-vinda – bússola moral, que aqui vem na forma da excelente participação da babá Jeanise Jones (é incerto se ela estava ou não por dentro da piada, assim como muita gente no filme).

O outro elemento que faz Borat funcionar novamente já é algo mais natural e é o timing que Cohen escolheu para trazer o jornalista de volta. O novo filme chega às vésperas da eleição americana mais conturbada da história moderna, em que um líder autoritário com delírios fascistas busca a reeleição enquanto inflama os ânimos de seus seguidores fiéis, que variam entre conspiracionistas, supremacistas brancos e neo-nazistas. 

Os EUA abraçaram tudo de mais repugnante que Borat forçava a barra para conseguir expor em 2006 e com isso, o personagem acaba soando até mais contido nessa sequência. Na maior parte do tempo, Cohen apenas cria a situação e deixa a coisa rolar naturalmente. É assim na cena do comício com Pence, na já citada marcha em Washington, num baile de debutantes em que velhos falam abertamente com ele sobre as garotas menores de idade e na inacreditável sequência em que Borat se isola com dois membros da QAnon – teoria da conspiração absurda que afirma que famosos e políticos proeminentes do partido democrata participam de uma rede de pedofilia adoradora do diabo. 

Quando não deixa as pessoas se afundarem sozinhas, Cohen cria situações ainda mais engenhosas e absurdas que no primeiro filme: é só prestar atenção na forma que ele encontra para justificar uma cena envolvendo um pastor – que culmina num diálogo tão surreal que não seria tão impactante se tivesse sido roteirizado. Além é claro, na construção da situação que leva ao chocante clímax do filme envolvendo o ex-prefeito de Nova York e atual advogado de Trump, Rudy Giuliani.

No fim, seja pelo momento em que foi lançado ou pelos anos de Trump e Bolsonaro terem tornado a exposição ao ridículo de pessoas odiáveis mais prazerosa, “Borat: Fita de Cinema Seguinte” é um filme ainda melhor e mais bem realizado que o primeiro. Pode até não ser tão engraçado quanto, mas é, sem dúvida, mais impactante. 

Isso porque em 2006, com os EUA prestes a eleger Barack Obama, estávamos numa zona de conforto em que racistas, misóginos, homofóbicos e xenófobos eram vistos como as párias da sociedade que são, sendo expostos ao ridículo e gritando loucuras de dentro de suas tocas. Causava revolta sim, mas era fácil dar risada porque eram pessoas vivendo numa bolha do absurdo.

Agora, elas tomaram a linha de frente dos EUA e de diversas grandes nações do mundo e a perspectiva de ter mais quatro anos de Donald Trump, aliado a lembrança de tudo que já vimos até agora, faz a risada emudecer, só ficando mesmo a revolta.

Borat
imagem reprodução – Borat: Fita de cinema seguinte

Borat voltou contra qualquer expectativa, já que Sacha Baron Cohen afirmava há anos que havia aposentado o personagem. Apesar do ator não ter afirmado com essas palavras, a verdade é que foi a necessidade que o trouxe de volta. E agora que temos esse novo filme, por mais engraçado que ele seja, só esperamos, do fundo do coração, que agora Borat possa se aposentar de vez.

Marcelo Silva, colunista de Cultura

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